A
historiografia nos revela que o imperador dom Pedro II havia ficado frustrado
pela falta de empolgação da população com o recém-inaugurado jardim zoológico.
Para atrair visitantes, o imperador apostou então todas as fichas no projeto do
mineiro João Batista Viana Drummond, que já havia administrado a Estrada de
Ferro Pedro II. O projeto Drummond, implantado em 1880, teve pleno êxito, com
os visitantes a apostar nos bichos do zoológico, ou melhor, em 25 grupos de
animais e em combinações a alcançar o número 100. Logo cedo, à entrada do
jardim zoológico, colocava-se uma caixa com um bilhete numerado dentro. Então,
a caixa ia para o alto de um poste. No fim da tarde, abria-se a mesma para
divulgação do número e o vencedor apresentava o seu bilhete comprado para levar
um prêmio em dinheiro.
Drummond,
que virou barão só em agosto de 1888, povoou de humanos o zoológico do
imperador. Na República, o seu invento, popularizado pelo nome de jogo do
bicho, sustentou, embora proibido em 1890, o carnaval carioca. Mais ainda, a
jogatina alimentou o caixa 2 de políticos, corrompeu policiais, deu apoio à
ditadura (à época, os bicheiros tinham credibilidade e voz junto aos cidadãos)
e completou a aposentadoria de velhinhos colocados nas ruas como apontadores
dos jogos. Fora isso, a jogatina com banqueiro garantiu impunidade ao reformado
capitão-bicheiro Guimarães, do serviço secreto do Exército e um dos
torturadores do regime militar.
O
grande expoente da contravenção, que deu um upgrade nas ilicitudes em termos de
controle, modernidade e transnacionalidade, foi Castor de Andrade, um advogado
sem nunca ter frequentado aulas na faculdade e que herdou as bancas de jogo da
mãe, Carmem de Andrade, a primeira mulher a comandar essa modalidade
contravencional no planeta. Castor importou o capo-mafia Antonino Salamone,
contemplado com a cidadania brasileira, num jogo de troca-troca e cartas
marcadas por ato do ministro Armando Falcão (governo Geisel), da pasta da
Justiça. Falcão, de triste
memória, desconsiderou as condenações de Salamone, foragido da Justiça
italiana e sentenciado por associação à máfia e por ter integrado a cúpula de
governo da Cosa Nostra siciliana. Com a orientação de Salamone, Castor criou no
Rio de Janeiro a cúpula dos bicheiros, que, à força, deliberava sobre a repartição
de territórios, acabava com as guerras entre contraventores e impunha uma
férrea hierarquia. Tudo no interesse da difusão da jogatina, incluída a
cooptação de políticos e financiamentos de campanhas.
Decano
dos bicheiros, falecido em 1997, Castor percebeu os problemas que viriam com a
Lei Pelé, destinada a abrir as portas do Brasil para as internacionais
criminosas, sob o falso manto de incentivo ao esporte. A Lei Pelé possibilitou
ao italiano Fausto Pellegrinetti, lavador de dinheiro da máfia e dos cartéis
colombianos de cocaína pós-Pablo Escobar, introduzir no Brasil os jogos de azar
com máquinas eletrônicas. Os componentes eletrônicos eram adquiridos na Espanha
e aqui montados. Pellegrinetti despachou para o Brasil, a fim de acertar com a
cúpula dos bicheiros do Rio e com Ivo Noal, o mandachuva paulista da
contravenção, o mafioso Lillo Lauricella, que aqui se estabeleceu sem ser
incomodado pela polícia.
![]() |
Passado. O mafioso Lauricella (à dir.) passeia no Parque Lage, Rio, 13 anos atrás. Preso na Itália em 2000, foi ele quem revelou os acordos com os bicheiros |
Preso na Itália pela chamada Operazione
Malocchio (Operação Mau-olhado), iniciada em 1995 pela Direção Antimáfia
dirigida pelo coronel Angiolo Pellegrini, o mafioso Lauricella revelou, em
juízo, o acordo celebrado com os bicheiros brasileiros. Numa das interceptações
telefônicas entre Lauricella e Pellegrinetti foi dito que a Lei Pelé havia
pegado o Brasil de surpresa, sem empresários com capital suficiente para a
aquisição de máquinas a serem espalhadas pelo território nacional.
Para
lavar o dinheiro dos cartéis colombianos da cocaína, Pellegrinetti escolheu o
Brasil,
a República Dominicana, onde lavava o dinheiro em flores exóticas e frutas, e a
Rússia, com placas de alumínio. Por aqui, Pellegrinetti, com capital da cocaína
colombiana, disseminou no Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Minas e Ceará
máquinas de jogos eletrônicos de azar. Numa primeira leva, foram 35 mil
máquinas eletrônicas, todas com componentes da empresa espanhola Recreativos
Franco, cujo dono foi preso nos EUA. Em São Paulo, a família Ortiz, cujo
inquérito foi arquivado em face de aceita a explicação de que não sabia tratar
com criminosos internacionais, dividia com Ivo Noal a exploração da jogatina, tudo apoiado na Lei Pelé.
Com o sucesso da Operazione Malocchio,
quebrou-se a conexão brasileira operada por Fausto Pellegrinetti,
internacionalmente um dos maiores lavadores e recicladores de capitais do crime
organizado transnacional. Abriu-se espaço, então, para velhos (a juíza Denise
Frossard condenou 14 deles) e novos empresários da jogatina substituírem os
mafiosos: Lauricella virou colaborador de Justiça e, dois anos depois e com
outra identidade, acabou metralhado depois de deixar um dos seus cassinos
abertos na Venezuela, naquilo que foi considerado um acerto de contas por ter
delatado. Na noite do assassinato, Lauricella portava uma mala com vultosa
renda do cassino, que permaneceu intacta, ao lado do corpo.
Carlos
Augusto Ramos, vulgo Carlinhos Cachoeira, é um dos filhotes da Operazione
Malocchio e da incúria de algumas autoridades brasileiras, a começar pelo então
ministro da Justiça (governo FHC), o atual senador Renan Calheiros. Com técnica
mafiosa, Cachoeira montou uma holding criminal e recicla dinheiro lavado em
atividades formalmente lícitas, por meio de inúmeras empresas, de remédios a
automóveis.
Só para lembrar, CartaCapital, em três
edições, denunciou o esquema da jogatina eletrônica de azar no Brasil, as suas
ramificações internacionais e, por aqui, a lavagem de dinheiro escancarada do
tráfico internacional de drogas proibidas. CartaCapital entrevistou o
responsável pela Operazione Malocchio sobre a conexão criminal Itália-Brasil. Do lado italiano foram todos
definitivamente condenados. No Brasil, o inquérito foi arquivado a pedido de um
membro do Ministério Público Federal. Com o arquivamento, a conexão brasileira
foi apagada, como se nunca tivesse existido. Com o “apagão”, os Carlinhos
Cachoeiras acabaram “vitaminados” e posaram à sombra de políticos e os da
velha–guarda do bicho, como Anísio Abraão, Capitão Guimarães, Turcão etc.
************************************************************
álter Maierovitch -
CartaCapital - 01.05.2012
Walter Maierovitch é jurista e professor, foi
desembargador no TJ-SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário