Pois é: há mais mistérios no universo dos palavrões
do que o senso comum imagina. Mas a ciência ajuda a desvendá-los. Pesquisas
recentes mostram que as palavras sujas nascem em um mundo à parte dentro do
cérebro. Enquanto a linguagem comum e o pensamento consciente ficam a cargo da
parte mais sofisticada da massa cinzenta, o neocórtex, os palavrões “moram” nos
porões da cabeça. Mais exatamente no sistema límbico. É o fundo do cérebro, a
parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva: se o nosso
neocórtex é mais avantajado que o dos outros mamíferos, o sistema límbico é bem
parecido. Nossa parte animal fica lá.
E sai de vez em quando, na forma de palavrões. A
medicina ajuda a entender isso. Veja o caso da síndrome de Tourette. Essa
doença acomete pessoas que sofreram danos no gânglio basal, a parte do cérebro
cuja função é manter o sistema límbico comportado. Elas passam a ter tiques
nervosos o tempo todo. E, às vezes, mais do que isso. De 10 a 20% dos pacientes
ficam com uma característica inusitada: não param de falar palavrão. Isso
mostra que, sem o gânglio basal para tomar conta, o sistema límbico se solta
todo. E os palavrões saem como se fossem tiques nervosos na forma de palavras.
Mas você não precisa ter lesão nenhuma para se
descontrolar de vez em quando, claro. Como dissemos, basta tropeçar numa pedra
para que ela corra o sério risco de ouvir um desaforo. Se dependesse do
pensamento consciente, ninguém nunca ofenderia uma coisa inanimada. Mas o
sistema límbico é burro. Burro e sincero. Justamente por não pensar, quando
essa parte animal do cérebro “fala”, ela consegue traduzir certas emoções com
uma intensidade inigualável. Os palavrões, por esse ponto de vista, são poesia
no sentido mais profundo da palavra. Duvida
Então pense em uma palavra
forte. “Paixão”, por exemplo. Ela tem substância, sim, mas está longe de
transmitir toda a carga emocional da paixão propriamente dita. Mas com um
grande e gordo “puta que o pariu” a história é outra. Ele vai direto ao ponto,
transmite a emoção do sistema límbico de quem fala direto para o de quem ouve.
Por isso mesmo, alguns pesquisadores consideram o palavrão até mais sofisticado
que a linguagem comum.
É o que pensa o psicólogo
cognitivo Steven Pinker, da Universidade Harvard. Em seu livro mais
recente, Stuff of Thought (“Coisas do Pensamento”, inédito em
português), ele escreveu: “Mais do que qualquer outra forma de linguagem,
xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o poder de combinação
da sintaxe; a força evocativa da metáfora e a carga emocional das nossas
atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas”. Traduzindo: palavrões são f*.
Tão f* que nem os usamos só para
xingar. Eles expressam qualquer emoção indizível, seja ruim, seja boa. Então,
se um jogador de futebol grita palavrões depois de marcar um gol, ele não o faz
por ser mal-educado, mas porque só uma palavra saída direto do sistema límbico
consegue transmitir o que ele está sentindo. Outra prova de eficácia é que eles
estreitam nossos laços sociais. Se você xingar alguém gratuitamente e o sujeito
não ficar bravo, significa que ele é seu amigo. Daí que grupos de homens adoram
usar cumprimentos como “Fala, cuzão!” Isso deixa claro que todos ali são
íntimos. “Perceber o xingamento como agressão ou ferramenta social depende do
contexto”, disse o psicólogo Timothy Jay, da Faculdade de Artes Liberais de
Massachusetts, para a revista americana New Scientist. “Num vestiário
masculino, por exemplo, quem não xinga é o ‘panaca’”.
Timothy Jay sabe do que está
falando. É um expert em palavrões. Ele passou as últimas 3 décadas anotando as
sujeiras que ouvia em lugares públicos. Juntou mais de 10 mil ocorrências. E
colocou em números cientificamente rigorosos (na medida do possível) aquilo que
você já sabia: “foda” e “merda” (ou “fuck” e “shit”) correspondem à metade de
todos os palavrões ditos – sem contar suas variantes.
Não é à toa. Como os palavrões
nascem na parte primitiva do cérebro, quase todos versam sobre as duas coisas
mais básicas da existência:
Sexo e excrementos
Veja só. “Merda” é um palavrão
mais ofensivo que “mijo”, por sua vez mais pesado que “cuspe”, que nem palavrão
é. Se você fosse excretar alguma dessas coisas na rua, essa também seria a
ordem de impacto nas outras pessoas – do mais para o menos chocante.
Coincidência? “Não. Não é por acaso que as substâncias que mais dão nojo também
sejam vetores de doenças. A reação de repulsa à palavra é o desejo de não tocar
ou comer a coisa”, afirma o médico americano Val Curtis no livro Is
Hygiene in Our Genes? (“A Higiene Está nos Nossos Genes?”, sem tradução
para português).
Se é fácil entender por que
excrescências são palavrões, não dá para dizer o mesmo sobre os termos ligados
ao sexo. Afinal, sexo é bom, não? Não necessariamente. “Ele traz altos riscos,
incluindo doenças, exploração, pedofilia e estupro. Esses males deixaram marcas
nos nossos costumes e emoções”, diz Pinker. Foquemos em “estupro”. Pegar
mulheres à força permitia que um macho fizesse dezenas, centenas de filhos,
coisa que contou pontos no jogo da evolução. Já para as mulheres isso é o
inferno. Então selecionar o pai é fundamental, e engravidar de alguém que a
violentou, um baita prejuízo.
Daí foi natural que a expressão
“foder alguém” virasse sinônimo de “fazer um grande mal”. Para entender isso
melhor, complete a frase “Fernando ___ Paula” para mostrar que eles transaram,
usando apenas uma palavra. Quase todas as opções para preencher a lacuna são
palavrões. Já os termos leves para relação sexual sempre carregam a preposição
“com”: você pode dizer que Fernando fez amor com Paula, dormiu com, fez sexo
com, transou com… Todos os exemplos indicam que Fernando e Paula participaram
do sexo de igual para igual. Com os palavrões, a história é outra. Eles deixam
claro: Paula está sempre numa posição inferior.
Note que a origem de “fodido” e
seus equivalente não envolve o sexo apenas como uma ferramenta de submissão de
homens contra mulheres. Mas de homens contra homens também. O estupro
homossexual sempre foi, e segue sendo, uma forma eficaz de deixar claro num
bando de machos quem é o chefe – a violência sexual dentro dos presídios está
aí para provar. A coisa é tão arraigada que até uma palavra inocente hoje, como
“coitado” ou “tadinho”, sua variante mais fofa, significa “aquele que sofreu o
coito”.
Mas espera aí: como algo tão
barra-pesada vira uma palavra até bonitinha? É o que vamos ver.
A vida e a morte de um palavrão
“Que se dane!”, “diabos” ou “vá
para o inferno” já foi algo mais impactante. Claro: até décadas atrás não havia
prognóstico pior que não ir para o céu quando morresse. Então, quando a idéia
era insultar para valer, nada melhor que mandar alguém para o inferno. “A perda
de eficácia das palavras tabus relacionadas à religião é uma óbvia conseqüência
da secularização da cultura ocidental”, afirma Pinker.
Outra: quando “câncer” era
sinônimo de morte, também não podia ser dita livremente. Nos obituários, a
pessoa não morria de câncer, mas de “uma longa enfermidade”. Com os avanços no
tratamento, a coisa mudou de figura, e câncer, apesar de ainda dar calafrios,
virou uma palavra bem mais corriqueira. As doenças em geral, na verdade,
passaram por um processo parecido. Em Romeu e Julieta, de Shakespeare, por
exemplo, há uma passagem dizendo: “Que a peste invada as casas de ambos!” Uma
baita ofensa no século 16, quando a peste bubônica ainda era uma ameaça na
Europa. Mas agora, no mundo limpo e cheio de antibióticos que a gente conhece,
o xingamento shakespeariano parece inócuo.
E também há o inverso: palavras
normais que viram tabu. Em algum momento da história do português um sujeito
chamou pênis de “pau”. E uma palavra originalmente “pura” enveredava para o mau
caminho. Nada mais comum: hoje ninguém se lembra mais de “caralho” como sendo a
cestinha que ficava no alto do mastro dos navios, ou “boceta” como uma caixa
pequena e redonda. “A palavra vira tabu quando ganha um sentido simbólico”,
afirma o etimólogo Deoníoso da Silva, da Universidade Estácio de Sá.
Mais uma mostra de como os
palavrões flutuam com o espírito do tempo são as expressões que são tabu num
lugar e não têm nada de mais em outro. Se você for a Portugal, vai ver que eles
preferem cu e rabo para referirem-se às nádegas, e que coram quando alguém fala
“broche” (o termo sujo para sexo oral).
Mas quem decide o que é palavrão
e o que não é? “Isso depende dos mecanismos de conservação da língua, que são o
ensino, os meios de comunicação e os dicionários. As palavras relacionadas a
sexo que não são palavrões são quase todas da literatura científica, como pênis
e ânus”, explica a lingüista Wânia de Aragão, da Universidade de Brasília. Não
que isso impeça termos científicos de hoje, como “pedófilo”, de virar palavra
suja um dia. A palavra “esquizofrênico”, por exemplo, nasceu na ciência, mas
agora, com o aumento dos dignósticos de doenças mentais, caiu na boca do povo.
E está virando xingamento.
Mas saber quais serão os
palavrões do futuro é tão impossível quanto prever o futuro da tecnologia, da
humanidade ou do Corinthians. O escritor e comediante inglês Douglas Adams,
resumiu isso bem no clássico O Guia do Mochileiro das Galáxias. O livro
diz que o palavrão mais sujo entre os habitantes dos outros planetas da Via
Láctea é uma expressão bem conhecida dos terráqueos: “Bélgica”.