Apesar da leveza do domingo, não
consigo deixar de falar deles, os náufragos do Mediterrâneo, africanos, árabes,
católicos e muçulmanos que buscam uma nova vida e morrem no fundo do mar. Às
vezes, tratamos essas notícias como sombras que passam. Mas elas se repetem,
dramaticamente, sobretudo a partir do Oriente Médio esfacelado pela guerra. Os
traficantes de gente preparam suas cargas humanas de tal maneira que afundá-las
é um movimento de dispersão, que permite a fuga e a renovação do seu negócio
letal.
Que importância tem deixá-los morrer
acorrentados nos porões, se já pagaram pela viagem ao além? Tenho lido sobre a
crise mundial. Não sei se existe uma saída durável nem lá fora nem aqui dentro
do Brasil. Constato apenas que o capitalismo não consegue cumprir sua promessa
de livre trânsito para mercadorias e pessoas.
Seus produtos circulam, mas exércitos
estão a postos para evitar que os trabalhadores busquem livremente suas
condições de trabalho. E há muros por toda parte. Precisamente nessa semana de
terríveis naufrágios no Mediterrâneo, recebo mensagens do Acre lembrando que a
tragédia se desloca também para o Brasil. O governo de lá, depois de receber 35
mil pessoas e esgotar seus recursos, jogou a toalha. Não tem como amparar os
refugiados que chegam pela Bolívia e o Peru. No princípio eram apenas
haitianos. Começam a chegar os africanos.
Dirigido por traficantes e entrando por
terra, o fluxo no norte do Brasil não tem a mesma dose letal dos barcos no
Mediterrâneo. Mas é tão subestimado, nacionalmente, que pode tornar um trauma
no futuro. Segundo os dados que tenho, chegam apenas 70 clandestinos por dia. O
governo do Acre resolveu ampará-los desde o princípio. Quando não conseguiu
mais, exportou um contingente para São Paulo.
Todos se lembram, houve até divergências públicas entre Acre e São Paulo. Elas escondem o aspecto essencial: a incapacidade do governo de Brasília de buscar soluções negociadas.
No momento, estamos brigando contra desvio de verbas, pedaladas fiscais, o governo tentando se manter, a oposição buscando derrubá-lo. Apertam os cintos da sociedade, enriquecem os partidos.
Mas a natureza do problema migratório
exige um novo enfoque. É um tema de todos nós. Demanda alguém que busque a
cooperação da Bolívia e do Peru, exige que, através de um trabalho de
inteligência, apontem-se as principais quadrilhas que exploram essa rota
amazônica. De que adiantaria isso, se os europeus, mais fortes e organizados,
estão perdendo a batalha no Mediterrâneo?
As condições tanto na Síria como na
África são cada mais graves. As mortes são o resultado da crueldade dos
traficantes, mas também de um aumento da vigilância na área.
Aqui no Brasil, o Acre aguentou
enquanto pôde. Talvez tenha sido voluntarista, aguentando mais do que,
realmente, poderia. Como as coisas acontecem muito ao norte e os naufrágios no
Mediterrâneo parecem acontecer num outro mundo, há um silêncio sepulcral em
Brasília. Será que os políticos, tanto do governo como da oposição, acreditam
mesmo que essas grandes comoções mundiais não nos dizem respeito?
Quando os haitianos começaram a chegar
a Brasileia estive lá conversando com eles. Ficou bastante claro que era um
movimento no seu início. As famílias e os amigos esperavam a hora de vir
também. Visitei os sírios numa mesquita em São Paulo, e também ficou bastante
claro que, para muitos, o Brasil era o ponto final na sua rota de fuga.
Com a notícia de que os africanos
começam, lentamente, a substituir os caribenhos na rota que passa por Peru e
Bolívia, desaguando no Acre, torna-se evidente que o Brasil é o ponto final na
rota amazônica. Se me perguntarem, de repente, o que fazer diante disso tudo,
responderia: não sei. Mas pelo menos converso, pergunto, me interrogo.
O que impressiona é o mundo oficial
caminhar como se nada estivesse acontecendo. Setenta clandestinos por dia é um
número que não impressiona. Mas foi o bastante para exaurir o Acre.
Uma das piores consequências da
decadência política brasileira foi termos sido forçados a discutir a
roubalheira, a derrubar álibis e imposturas, enquanto o mundo segue seu curso
perigosamente. A crise brasileira não é produto direto da crise mundial, como
diziam as mentiras eleitorais. Supor que essas crises não se entrelacem, por
outro lado, é uma forma de enterrar a cabeça na areia.
É natural que todos queiram saber se Dilma cai ou não cai. Infelizmente, inúmeras outras desgraças se anunciam nas nuvens. No tempo em que a esquerda se dizia marxista, pelo menos era possível discutir o mundo. A passagem ao bolivarianismo estreitou seus horizontes ao nível mental de tiranetes sul-americanos, tão bem descritos pelo próprio Marx. Ainda por cima, inventaram uma presidente que não gosta de política externa.
É natural que todos queiram saber se Dilma cai ou não cai. Infelizmente, inúmeras outras desgraças se anunciam nas nuvens. No tempo em que a esquerda se dizia marxista, pelo menos era possível discutir o mundo. A passagem ao bolivarianismo estreitou seus horizontes ao nível mental de tiranetes sul-americanos, tão bem descritos pelo próprio Marx. Ainda por cima, inventaram uma presidente que não gosta de política externa.
Artigo publicado no Segundo Caderno do
Globo em 26/04/2015
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