Houve um tempo em
que os cachorros corriam atrás dos carros. Era uma cena comum: vira-latas
perseguindo carros, latindo, como se quisessem expulsar um intruso no seu meio.
Às vezes viam-se bandos de cães indignados, perseguindo carros que passavam, e
dava até para imaginar que um dia conseguiriam alcançar um, dos pequenos,
pará-lo, cercá-lo e. E o quê? Comê-lo? Nunca ficou claro o que os cachorros
fariam se alcançassem um carro. Era uma raiva sem planejamento. (Hoje, a cena
de cachorros correndo atrás de carros é rara. Os cachorros modernizaram-se.
Renderam-se ao domínio do automóvel. Ou convenceram-se do seu próprio ridículo).
Os manifestantes
contra o governo sabem o que não querem - a Dilma, o Lula, o PT no poder -, mas
ainda não pensaram bem no que querem. Se conseguirem derrubar o governo, que
cada vez mais se parece com um Fusca indefeso sitiado por cães obsoletos, o
que, exatamente, pretendem fazer com o vácuo? A política econômica atual é um
sonho neoliberal. Seu oposto seria uma volta à política econômica pré-Levy?
Dependendo de como for impedida a Dilma, o vácuo pode ser preenchido pela
ascensão do vice-presidente (tudo bem), pelo eleito num novo pleito (seja o que
Deus quiser) ou pelo Eduardo Cunha (bate na madeira). O que os manifestantes
preferem? A raiva precisa de um mínimo de previsão.
Uma parte dos manifestantes não tem dúvida do que quer. Da primeira grande
manifestação de 2013, passando pelas duas deste ano, o que mais cresceu e
apareceu foi a linha Bolsonaro, que pede a volta da ditadura militar e lamenta,
abertamente, que os militares não tenham matado a Dilma quando tiveram a
oportunidade. Por sinal, o Fernando Henrique talvez se lembre que o Bolsonaro
disse a mesma coisa a seu respeito. Mas, enfim, as guerras fazem estranhos
aliados.
Sugiro a quem se preocupa com o momento nacional que faça um pouco de
arqueologia histórica para manter as coisas em perspectiva. Procure na imprensa
da época a reação causada pela marcha da família com Deus pela liberdade contra
a ameaça comunista. Também foi uma manifestação enorme, impressionante. E foi o
preâmbulo do golpe de 64, e dos 20 anos negros que se seguiram e hoje tanta
gente quer ver de novo. Pode-se argumentar que os tempos eram outros, tão
distantes que os cachorros de então ainda corriam atrás de carros, e a luta era
outra. Mas o triste é que ainda é a mesma luta."
Por Luis Fernando Verisssimo -
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