Ana Leitão
No século XXI, o neopacote obscurantista, inspirado na velha New
Age, inclui tendências que estavam na moda há uns séculos atrás. É um pacote
porque, quem o adota, toma como suas ideias que tendem a vir em cadeia, aos
pares ou aos molhos. É neo porque o velho obscurantismo sofreu uma remodelação
aparente que permite o emprego de termos em inglês e a utilização das novas
tecnologias. Os seus fundamentos assentam em literatura de blogue e em
preceitos ditos ancestrais, cuja fidedignidade é medida pelo número de pessoas
que repetem as mesmas falácias e garantida pelo facto de a internet dar vida
eterna aos boatos. Com efeito, ficam assegurados seguidores para qualquer
ideia, por muito descabida, ilógica, desatualizada, desonesta ou aviltante que
esta possa ser.
Assim, a inclinação geral do neo-obscurantismo é uma atitude
anticiência que tende a colocar em pé de igualdade postulados pessoais de
neogurus, com propósitos mais ou menos mercantilistas, a par da idolatria de
tudo o que é considerado “natural” – esquecendo-se os seus defensores que nada
é natural na cultura humana - e os princípios que sustentam o método
científico. Consequentemente, em pleno século XXI, pode-se ter uma posição
antivacinação, ser-se seguidor de um qualquer regime alimentar inspirado em
mitos, assumir-se como apóstolo de um sincretismo religioso que faz depender a
autenticidade dos seus princípios do seu caráter exótico e exibir-se como
inflamado defensor de teorias da conspiração mal amanhadas, em desfavor de corpos
teóricos assentes em evidências, até ao momento, cientificamente
sustentadas. Gilles Lipovetsky designou de “hipermoderna” esta tendência
para voltar ao passado e glorificá-lo, através da transformação de crenças e
tradições em axiomas, que se opõem ao progresso mais básico. Contudo, aí reside
um contrassenso fundamental: as tradições e os costumes ancorados no passado
referem-se a formas antigas de fazer as coisas, a visões do mundo para as quais
já não deveria haver lugar num sistema pautado pelo respeito pelo outro e pela
inovação, em lugar da simples perpetuação, mecânica e demasiadas vezes
desumana, irracional e até suicida. Não é o grau de cristalização do passado no
presente que deve garantir a legitimidade e a autenticidade das ideias e
dos comportamentos. Não é o “saber” de experiência feito, nem os exemplos dos
nossos avós, que nos vão ensinar a gerir recursos finitos seriamente ameaçados,
nem a respeitar o nosso entorno humano e não-humano, em toda a sua
heterogeneidade e num contexto cada vez mais globalizado. Essas estratégias,
apoiadas na memória, podem ser refúgios seguros para identidades pessoais e
grupais cada vez mais em risco, terra firme para um tempo cada vez mais
acelerado e para um espaço cada vez mais fluido. Mas o passado não é um valor
por si só. E o seu enaltecimento cego pode fazer-nos incorrer nos mesmos
erros de sempre, tantas vezes cometidos ao longo da História, pelos mesmos
motivos. O elogio do passado, nestes moldes agora preconizados, apenas poderá
conduzir ao sério comprometimento do futuro e das suas oportunidades de
mudança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário