OS GRITOS DE GOL NAS RUAS ABAFAVAM OS GEMIDOS DE DOR NOS PORÕES (1970)
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Emilio Garrastazu Médici, o sanguinário |
"Pai!
Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
(...) De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta"
(Chico Buarque/Gilberto Gil)
De vinho tinto de sangue
(...) De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta"
(Chico Buarque/Gilberto Gil)
Os que vêm acompanhando esta série hão de estranhar que a
música citada acima não seja aquela que mais marcou a conquista do Mundial Fifa
de 1970, Pra frente Brasil.
Depois de A taça do mundo é nossa (1958) e Frevo do Bi (1962), seria a escolha óbvia.
Mas, vivia-se o pior momento da ditadura brasileira e nem mesmo o maravilhoso futebol que exibíamos em gramados do México nos tornava "noventa milhões em ação", "todos ligados na mesma emoção".
Atravessei a Copa
como preso político no DOI-Codi/RJ, tomando conhecimento dos gols canarinhos pela
gritaria no quartel e recompondo as forças durante a pausa para respirar que as
partidas da Seleção nos proporcionavam – pois os torturadores preferiam
assistir às belas proezas nos estádios do que protagonizar a rude barbárie nos
porões.
Nada impedia que, poucas horas depois, estivéssemos recebendo choques e pancadas, pendurados no pau-de-arara. A gritaria de júbilo cedia lugar aos urros desesperados.
Não, naqueles dias podia até parecer que "todo o Brasil deu a mão", mas havia um abismo intransponível entre as mãos que golpeavam e as mãos que acudiam.
Os que nos diziam comemorem! eram os mesmos que berravam cale-se!, ame-o ou deixe-o! e comunista bom é comunista morto. O vinho nesse cálice era fel.
E, para os que estranharem esta
intromissão da detestável política num espaço dedicado ao encantamento do
futebol, vale lembrarmos quão determinante ela foi no momento dos
acontecimentos.
JOÃO SEM MEDO, AS FERAS E O OGRO
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Saldanha |
Depois do acachapante fiasco no
Mundial da Inglaterra, quando a convocação de um número excessivo de jogadores
e o tortuoso ritual dos cortes minaram a união do elenco, o Brasil decidiu
definir desde o início um time-base.
Foi como agiu João Saldanha,
jornalista e técnico com notórias afinidades com o Partido Comunista
Brasileiro, um homem carismático e de personalidade fortíssima (o apelido
de João Sem Medo era dos mais merecidos).
Montou o escrete para as eliminatórias com maioria de
jogadores do Santos e Botafogo, as duas melhores equipes da época. E, para
reerguer o combalido moral brasileiro, nada como o rótulo inspirado que o
escritor e colunista Nelson Rodrigues criou: as feras do Saldanha.
A ideia era que nossos jogadores
não deveriam temer nem
respeitar ninguém, entrando em
campo para atropelar os adversários.
Ótimo especial do Canal 100 sobre a trajetória brasileira nas eliminatórias
E foi o que aconteceu nas eliminatórias: o Brasil passou
como um trator sobre Colômbia, Paraguai e Venezuela, vencendo os seis jogos,
com direito a goleadas. Foram 23 gols marcados e apenas dois sofridos.
Aí, uma conspiração esportivo-militar derrubou o técnico heroico; pesaram
fatores como a independência que Saldanha assumia em relação aos
repulsivos cartolas e sua relutância em colaborar com o marketing do
ditador de plantão.
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A imprensa denunciou a armação, mas o golpe estava dado |
Emilio Garrastazu Médici, o sanguinário, era dado à
demagogia futebolística. Ia, p. ex., assistir aos clássicos no Maracanã com um
rádio de pilha colado ao ouvido... e batalhões de seguranças ao redor!
Tentando suavizar sua imagem de ogro, Médici sugeriu a
entrega de uma camisa de titular ao folclórico atacante Dadá Maravilha, ao que
Saldanha respondeu:
"Quem escala a seleção sou eu, quando o presidente
escalou o seu ministério ele não pediu a minha opinião".
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Yustrich
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Ficou, claro, com a cabeça a prêmio. Os cartolas açularam
então contra ele um técnico grosseiro e metido a valentão, que estava vivendo
boa fase à frente do Flamengo: Dorival Knipel, oYustrich.
Com a promessa de que sucederia Saldanha se o derrubasse, Yustrich desandou a
atacá-lo de todas as formas, sem sucesso.
Até que levou a coisa para o lado pessoal, atingindo a honra do João, que
provou ser mesmo sem medo: apanhou um revólver e foi atrás do difamador em
pleno estádio do Flamengo.
Yustrich, o falso ferrabrás, fugiu pulando a cerca, apesar de obeso. Cena
ridícula.
E os cartolas, a pretexto de descontrole emocional, demitiram Saldanha,
substituindo-o pelo dócil Zagallo.
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