Carlos tenta animar
Marcus:
– Vamos amigo,
coragem! O que é que há, meu rapaz? Alegria. Olhe que não devemos perder tempo,
ou não vai sobrar mulher bonita e inteligente para nós.
– Não se trata de
mulheres. O problema é A Mulher. Eu não tenho paz. Desde que a Camille foi para
a França, minha vida se tornou um desalento. Ela não é bonita, é a própria
PanAir, aquilo sim é avião.
– Vai dizer que
voltou a te escrever?
Emenda Adauto.
Juntos, os três leem
a mais uma carta que Marcus traz.
– Eu cheguei a uma
conclusão: mulher muito bonita ou é neurótica, ou é burra ou é mau caráter.
E se consolam. Os
desenganos do amor eram assunto predileto entre os boêmios rapazes. Conversavam
longamente, discutindo os amores solitários, não correspondidos,
contraditórios, instáveis e impossíveis de se realizarem. Uma noite, Carlos
aproxima-se de Marcus, e acompanhado do violão de Adauto, entoa “De amor e
paz”:
– Quem anda atrás de
amor e paz não anda bem… / Sei que é demais querer-se a paz e o amor também… /
Não hei de ver envelhecer meu coração / Vou sempre ter em vez de paz
inquietação…
Com olhos mareados,
os amigos se abraçam, enquanto as mesas em volta batem palmas. Os aplausos vão
crescendo e logo a música alcança o estrelato, ao ser defendida por Elza Soares
nas eliminatórias do II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record.
Entre o sábado da
classificação e a segunda-feira da final, são dez dias em que o Brasil para.
Não há quem pense outra coisa. Quem levará o troféu Viola de Ouro e os 20
milhões de cruzeiros do 1º prêmio?
Na disputa, uma
dúzia de canções assinadas por nomes como Chico Buarque, Geraldo Vandré,
Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Edu Lobo, Carlos Lyra, Millôr Fernandes…
Convocado para dar
voz às obras, o time de estrelas da emissora paulista: Elis Regina, Roberto
Carlos, Jair Rodrigues, Nara Leão, Elza Soares, Maysa, MPB-4, Maria Odete e
Leny Everson.
No bar onde nascera
“De amor e paz”, o assunto não pode ser outro:
– E então Carlos, o
que é que você fará com seus 20 milhões? Vai comprar um fusca, como fez o Edu?
– Riam de minha
música, em breve terei uma frota rodando a cidade. Cada bêbado que sair daqui
vai deixar dinheiro em um de meus táxis! Volto pro Paraná, ouvir Guarânia e
ficar bem longe de vocês. Isso, sim.
Brincadeiras à
parte, “A banda”, de Chico, e “Disparada’, de Vandré, monopolizavam as
atenções. Não restava dúvida, uma delas sairia vencedora e a outra seria a
vice-campeã. A disputa ficava entre 3º e 5º lugar.
“Estava à toa na
vida o meu amor me chamou…”
“Prepare o seu
coração para as coisas que eu vou contar…”
Era o que se ouvia o
tempo todo, entre as mesas. Bastava um começar para outro responder:
– Estava à toa na
vida…
– Prepare o seu
coração…
Os grupos
rivalizavam-se com ofensas pessoais, insultos familiares e, às vezes, força
física. Era preciso a intervenção de garçons para acalmar os ânimos.
– Vai ser de
disparada!
– Alguém com o nome
de Vandregésilo pode fazer poesia?
– Quer coisa mais
alienante que passar a vida vendo a banda passar?
Perdidos os
argumentos, lá iam mais dois bêbados terminar a disputa no muque. No dia da
final, Carlos não vai ao bar. Marcus reúne os mais íntimos em sua casa, para
verem a transmissão:
– Senta que já vai
começar!
– Traz mais uma bem
gelada, por favor?
– Quer tirar a
fumaça do seu cigarro de meu nariz?
Ainda demarcavam
suas posses, quando a apresentadora escolhe a garota da plateia para sortear a
primeira música. Jair Rodrigues interpreta “Disparada” e o auditório vem
abaixo:
– Já ganhou! Já
ganhou! Gritam pela TV.
– Cacete, perdemos o
1º prêmio.
Brinca o Adauto.
– O Paulo tá no
júri, ele garantiu que a gente tava classificado. Vamos esperar! Tranquiliza
Marcus.
Ninguém consegue
manter controle. Verborrágicos, não conseguem ver o MPB-4. O silêncio só se faz
quando chamam o nome de Elza Soares. A tensão é enorme, parecem assistir à
cobrança de um pênalti. Angústia maior vem com o anúncio das cinco vencedoras:
– Em 5º lugar, de
Gilberto Gil, “Ensaio geral”…
Elis volta ao palco.
– Dessa vez não deu
pra ela, não teve Arrastão que a salvasse, não adianta abanar os braços!
– Deixe de
implicância, a moça é boa, a letra é engajada.
– Bom, agora só têm
dois prêmios.
– O Paulo nos
garantiu…
Vêm os anúncios de
4º e 3º lugar. A decepção é geral, não chamam “De amor e paz”. Carlos
levanta-se e sai da sala. Talvez para chorar escondido. E na TV:
– Atenção!… Muita
calma!… Pedimos silêncio no auditório!… Temos o prazer de apresentar o 2º lugar
desta noite… que receberá o prêmio de 10 milhões…
Todos esperam por
Vandré ou Chico. Então vem:
– Em 2º lugar, de
Adauto Santos e Carlos Paraná…
– Carlos, meu velho,
você ganhou!
Abandonam o aparelho
e carregam o amigo sobre os ombros até o bar. Não ficam para assistir o júri
decidir pela divisão do 1º lugar, entre A Banda e Disparada. A festa transborda
pelos corredores da Galeria Metrópole. Só termina pela manhã, com o secar da
última gota de álcool do estabelecimento.
Luis Carlos Paraná,
compositor, cantor, e violonista, era também o feliz proprietário de O Jogral,
a mais importante casa de música brasileira, em meados dos anos 60.
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