O que significa um discurso de má-fé? O filósofo Sartre
conceitua a má-fé como uma angústia existencial criada pela consciência da
nossa liberdade de agir, uma tentativa de nos livrarmos da responsabilidade
pelos efeitos colaterais de nossas decisões atribuindo a outras pessoas ou
contextos as culpas decorrentes delas.
Mas qual a relação deste conceito com a Ética na
Comunicação? Toda. O problema ético deste artifício discursivo é a corrupção da
verdade, a falta de explicação pública do que realmente está acontecendo, a
incapacidade que os outros envolvidos têm para solucionar os seus problemas da
melhor maneira possível. A má-fé é uma comunicação falseada em benefício dos
próprios interesses.
Quando um jogador de futebol realiza uma jogada ousada que
termina em gol, não hesitamos em chamá-lo de craque, jogador diferenciado,
aquele que desequilibra. Da mesma maneira, quando alguém decide no âmbito
empresarial de maneira a aumentar as vendas, alargar a fatia
de mercado da sua empresa, a concentrar o capital em volta
de si, não
hesitamos em chamá-lo de iluminado, de executivo de excelência, guru. Da mesma
maneira, um político que em situações difíceis consegue cooptar a opinião
pública, conservar o poder e, nos tempos de bonança, elege sucessores com facilidade,
é um estrategista ímpar, dotado de inteligência indiscutível.
No entanto, nas situações contrárias a essas, como, por
exemplo, no momento em que o jogador não joga bem, fracassa em levar
sua equipe à vitória; ou o executivo que na hora de decidir
acaba fazendo uma escolha equivocada que leva a resultados pífios; ou
o político que perde o poder, não consegue se reeleger e apequena a influência
de seu partido; nesses casos, as explicações costumam indicar como grande causa
destas ocorrências fatores externos à própria deliberação, à própria ação.
Elegem um bode expiatório como justificativa para a sua incompetência – Freud
explica, Sartre satiriza.
Assim, a seleção brasileira não jogou bem devido à
excelência do sistema defensivo adversário, pela marcação implacável dos
defensores, por excesso de faltas, por, talvez, estar mais preocupada com os
patrocinadores. Esse fenômeno também ocorre com algum executivo que tomou
decisões equivocadas. Outro exemplo típico é o do político que fracassa,
justificando sua derrota à ignorância dos eleitores, ao “aparelhamento do
Estado” pelo adversário, ao jogo sujo do marketing eleitoral… Provavelmente
esteja na sociedade errada, bem longe de Miami. Ilhado com um povinho que não
valoriza a meritocracia, que não tem memória e outras parafernálias do gênero.
Assim, no sucesso destacamos a liberdade deliberativa e o
acerto da escolha. No erro, destacamos a falta de liberdade deliberativa e
todas as variáveis que, transcendendo ao agente que delibera, determinam o seu
pesar. Há nesta estratégia uma má-fé na hora de encontrar as verdadeiras causas
dos sucessos e dos fracassos. Afinal de contas, se somos todos vítimas da nossa
trajetória, das condições em que vivemos, do meio ambiente, da temperatura, das
ideologias, do sistema, das relações entre o poder executivo e o legislativo,
da maneira como são escolhidos os deputados; se somos todos vítimas das coisas
do mundo como elas são, então deveríamos aceitar com maior tranquilidade também
que na hora dos grandes acertos não temos nenhum mérito. Porque tudo é o que só
poderia ser. Materialismo radical que impossibilita o livre-arbítrio, o poder
de decidir racionalmente. Atribuo os meus sucessos aos outros? Ou encaro o erro
como exercício da própria liberdade? Eis os dilemas existenciais que um canalha
não encara.
Os jornais midiáticos potencializam os discursos de má-fé
de importantes agentes sociais que melhor beneficiam os seus interesses. Não
questionam a lógica da liberdade ou da determinação. Ensinam que a má-fé é o
“jeitinho brasileiro” para enfrentar os problemas sociais. Tomo como exemplo os
problemas sociais de São Paulo. Quando ocorre o racionamento de água ou a corrupção
no metrô, os jornalistas blindam os políticos que atendem os seus interesses e
colocam a culpa no desmatamento da Amazônia ou nas falhas técnicas dos
processos licitatórios. Não se cogita uma má gestão
dos recursos naturais ou corrupção deliberada para beneficiar
interesses particulares de políticos que os agradam. Tudo é fruto da
contingência.
Porém, na notícia seguinte, os valores de avaliação
moral do mundo mudam radicalmente. A crise financeira que afeta
negativamente o PIB e exige mudanças fiscais não tem uma explicação na crise
econômica internacional, mas na escolha econômica feita por políticos que
desagradam os donos dos meios de comunicação. O mesmo ocorre quando descobrem
um escândalo de corrupção em uma estatal do petróleo, os problemas são
atribuídos aos políticos no poder e não às falhas nos processos licitatórios.
Discurso ético radicalmente inverso ao anterior. Não há mais uma explicação
contingencial – os jornais atribuem liberdade aos agentes sociais que erraram.
Um jornalismo sério deve adotar uma postura ética: Ou
atribui aos “fatos jornalísticos” contingências materiais e
históricas ou assume sua crença no livre-arbítrio.
Enquanto a mídia brinca com o sistema democrático, elegendo
seus heróis e vilões, culpando e perdoando quem a interessa, ela tira o foco
dos processos de corrupção social que ela mesma fomenta.
Revista Filosofia Ciência & Vida Ed. 109
Adaptado do texto “A má-fé como discurso corruptor”
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