O pobre de Deus" de Nikos Kazantzákis.
7 - paginas 165/166/167/168
O papa baixou os olhos e, lentamente, foi sentar-se no trono. Por cima de sua cabeça, pintadas no alto do espaldar, brilhavam duas chaves enormes, uma de ouro e outra de prata.
- Fala - disse, com voz calma -, por enquanto não posso julgar. Que queres? Escuto-te.
- Não sei o que dizer, Santo Padre, nem por onde começar, ou como expor o meu coração sob as tuas santas chinelas. Sou o polichinelo de Deus, pulo, danço e canto para Lhe provocar um sorriso nos lábios, nem que seja
fugaz. Ignoro todo o resto, sou incapaz de fazer qualquer outra coisa. Dá-me permissão, Santo Padre, de dançar e cantar nas cidades e aldeias. Dá-me o direito de andar esfarrapado e descalço, sem ter o que comer.
- Por que tens esse desejo tão intenso de pregar?
- Sinto que chegamos à beira do abismo. Dá-me autorização de bradar: "Vamos cair no abismo!" É só o que te peço!
- Crês que podes salvar a Igreja com tal brado, monge?
- Santo Deus! Quem sou eu para salvar a Igreja? Não existem o papa, os cardeais, os bispos? Não existe Cristo para protegê-la? Sabes perfeitamente que apenas peço uma coisa: bradar: "Vamos cair no abismo!”
Tirou do peito o manuscrito que me havia ditado. Arrastou-se até os pés do trono:
- Santo Padre, eis a regra que nos regerá, a meus irmãos e a mim. Deposito-a aos pés do teu trono. Digna-te colocar nela a tua venerável chancela. O papa cravou o olhar em Francisco.
- Francisco, que vens de Assis - falou lento, gravemente, como se o exorcizasse -, vislumbro chamas em torno de teu rosto. De onde provêm? Do inferno ou do paraíso? Não tenho confiança nos iluminados que pedem o impossível: o perfeito Amor, a perfeita Castidade, a perfeita Pobreza! Por que procuras ultrapassar o homem? Como ousas querer chegar aonde apenas Cristo chegou e onde se mantém em absoluta solidão? É uma grande insolência!
- "Desconfia, Francisco de Assis, porque a presunção é o verdadeiro semblante de Satã. Quem pode afirmar não ser ele quem te induz a te situares acima dos outros e pregar o impossível?”
Francisco baixou humildemente a cabeça.
- Santo Padre, dá-me permissão de falar por parábolas.
- Isso é outra insolência! - vociferou o papa. Cristo é que falava assim.
- Perdoa-me, Santo Padre, mas não disponho de outro recurso. Que posso fazer se o meu pensamento, e não somente ele, mas também a maior esperança, o maior desespero, transformam-se em contos de fadas quando os retenho durante muito tempo? Se abrires o meu coração, Santo Padre, encontrarás apenas danças e contos de fadas. Nada mais.
Cruzou os braços e calou-se. O papa olhava-o em silêncio.
Passado um instante, Francisco ergueu a cabeça:
- Posso falar, Santo Padre?
- Podes.
- Quando, no auge do inverno, a amendoeira se pôs a florir - começou -, todas as outras árvores reclamaram: "Mas que pretensão, que imprudência! No mínimo ela julga que pode trazer a primavera!" E a amendoeira sentiu vergonha. "Perdoem-me, irmãs", disse, "juro que não foi por querer. De repente, senti uma brisa cálida e primaveril no meu coração, e..."
Dessa vez o papa não se conteve e deu um salto:
- É demais! - gritou. - O teu orgulho e a tua humildade não têm limites. Deus e Satã travam guerra dentro de ti, e bem o sabes. . .
- Sei, sim, Santo Padre, e por isso vim pedir-te a minha salvação. Estende-me a mão! Não estás à testa da cristandade? E não sou uma alma em perigo? Ajuda-me!
- Preciso consultar Deus antes de tomar uma decisão. Vai-te!
Francisco se prosternou. Depois recuou de costas e eu o segui.
Caminhamos como bêbados, com passo incerto. As ruas ondulavam, as casas oscilavam, os campanários vergavam, o ar se enchia de asas brancas. Avançamos de braços estendidos, como nadadores abrindo passagem no mar. Às vezes, tínhamos a impressão de que alguém nos chamava pelo nome. Então nos virávamos, mas era só imaginação. Senhoras passavam por nós, inteiramente cobertas de véus, como fragatas impelidas por fogoso aguilão. Atrás de nós retumbava um oceano humano. Enormes cachos de uvas negras pendiam das janelas. A velha Igreja de Latrão constituía uma videira milenar cujas cepas enlaçavam às portas, as janelas, as sacadas, envolvendo a cidade inteira e perdendo-se no céu, carregada de frutos.
Chegamos ao rio, descemos à margem e molhamos o rosto na água para nos refrescar. Ao mesmo tempo em que o mundo e os cachos de uva se esvaneciam, nosso espírito se fortificava. Francisco me olhou, surpreso, como se nunca me tivesse visto.
- Quem és tu? - perguntou, inquieto. A memória, porém, voltou-lhe logo. Lançou-se em meus braços:
- Perdoa-me, Irmão Leão. Vejo tudo pela primeira vez. Que rumor é esse? Será o de Roma? Onde estão os apóstolos, então? Onde está Cristo? Fujamos daqui!
Olhando em torno, baixou a voz:
- Ouviste o papa? Como falava com prudência, pausadamente, com segurança! Quem o segue não se arrisca a perder-se, porém jamais poderá se libertar do lodo humano. E o nosso alvo, Irmão Leão, não é justamente libertar-nos?
- E crês que conseguiremos? - ousei perguntar, arrependendo-me logo.
- Que foi que disseste? - retrucou Francisco. Recuei:
- Nada. Não era eu quem falava. Foi o Diabo que se aproveitou de minha boca. Ele sorriu com amargura.
- Quando deixará o Diabo de falar por tua boca?
- Só quando eu morrer, posto que morra comigo.
- Tem confiança na alma humana, Irmão Leão, e sobretudo desconfia da prudência. A alma humana consegue o impossível.
Caminhava rapidamente pela beira da água, afundando os pés na lama do rio. De repente, parou e esperou por mim. Colocou o peso de sua mão em meu ombro:
- Abre bem os ouvidos - recomendou - e grava para sempre no espírito o que vou te dizer: o corpo do homem é o arco; Deus, o arqueiro; e a alma, a flecha. compreendeste?
- Não muito bem, Irmão Francisco. Que queres dizer? Reduze o teu pensamento à medida do meu espírito.
- Quero dizer, Irmão Leão, que existem três espécies de oração. A primeira: Meu Deus, retesa-me, senão apodrecerei. A segunda: Meu Deus, não me reteses demais ou eu me despedaçarei. A terceira: Meu Deus, retesa-me ao máximo, mesmo com o risco de me estraçalhar! "Retesa-me ao máximo, mesmo com o risco de me estraçalhar!
Esta é a nossa prece, Irmão Leão! Há três espécies, tanto de orações como de homens. Nunca esqueças isso, e não tremas. Já te disse várias vezes e agora repito: sempre te sobra o recurso de partir, de te libertares, ainda podes evitar o estraçalhamento!”
Curvei-me, tomei a mão de Francisco e beijei-a:
- Retesa-me ao máximo, Irmão Francisco - pedi, - mesmo com o risco de me estraçalhar!
Percorremos um longo trecho em silêncio. Eu trilhava as pegadas de Francisco e me sentia feliz. Realmente feliz. E no entanto sentia medo, pois me considerava indigno de seguir aquele homem perigoso que rogava a Deus para que o retesasse ao máximo. Procurava imitá-lo, que mais podia fazer? Mas ao passo que ele se oferecia ao Senhor com alegria, eu só podia fazê-lo tremendo. Aconselhava-me a partir, coisa a que me negava. Era tão doce o pão dos anjos que me alimentava. . .