O psicanalista afirma que o neoliberalismo cria
sofrimento e ensina o indivíduo a administrá-lo para gerar mais produtividade
SÉRGIO
GARCIA, DE PARATY
Ao lado da argentina radicada no Rio de Janeiro Paula
Sibilia, o psicanalista brasileiro Christian Dunker participou de uma
das palestras que mais repercutiram nesta 14ª edição da Flip. Eles
criticaram a espetacularização da vida pessoal e fazem coro que a ocupação de
escolas seja o início de uma nova era no ensino. Autor da tese do “narcisismo
à brasileira”, Dunker diz que aqui se tem enorme dificuldade de lidar com a
derrota, que é fundamental para o amadurecimento. Depois do encontro na Tenda
dos Autores, ele autografou o livro Mal-estar, sofrimento e sintoma e
em seguida conversou com ÉPOCA.
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O
psicanalista Christian Dunker. "A rede social criou uma ilusão de
que no fundo você é a majestade" (Foto: Walter Craveiro)
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ÉPOCA – O senhor cunhou a expressão "narcisismo à brasileira"
para se referir a um determinado comportamento que temos aqui. Quais os
componentes genuinamente nacionais desse narcisismo?
Christian Dunker – Estudei um fenômeno contemporâneo, a partir dos anos
1970, que tem a ver com a solução para um Estado que não conseguiu dar conta de
um projeto que ele mesmo criou de ocupar o norte e organizar as cidades que se
urbanizavam e recebiam muitos imigrantes. Isso gerou um narcisismo à
brasileira, que se revela em alguns elementos. Criou-se um mundo isolado
materialmente entre as pessoas. Você então se refugia nele e pensa que ali terá
uma vida viável. Isso vai acontecer nos condomínios das grandes
cidades, por exemplo, mas não só. Há outras áreas em que o Estado também vai se
demitir de sua função, como nas favelas. É como se dissesse: urbanização, nós
estamos fora, e vocês, moradores, é que vão dar seu jeito. Outro local são as prisões.
O Estado levanta muros, e os presos lá dentro que se virem. E, por fim, os shoppings,
que adquiriram uma função educativa de ser um berçário da classe média. Todos
esses lugares ganham leis próprias. E isso é típico do narcisismo à brasileira:
põe muro, põe síndico, e daí temos outro fenômeno, que é a hipertrofia da lei,
em que se vai criando lei com base em exceções. Temos uma Constituição gigantesca,
com códigos de todo tipo e que a gente está sempre desobedecendo.
ÉPOCA – O escritor americano Benjamin Moser, um estudioso do Brasil, disse
numa roda da Flip que se surpreendeu ao chegar ao país, há 20 anos, e ver que,
ao contrário da imagem padrão, o povo daqui é triste e que está sempre se
decepcionando com as expectativas criadas. Concorda?
Dunker – Aí tem um detalhe clínico. Esse narcisismo à brasileira não é
alegre nem triste, ele é maníaco. Axé, euforia, Carnaval, estar sempre up não é
alegria. Esse estado de agitação e euforia só secundariamente é acompanhado da
verdadeira alegria e também da verdadeira tristeza, que é uma coisa que nos
falta muito. Durante um evento como o 7 a 1 para a Alemanha, é
muito saliente para um analista que não tenha havido luto por aqui. Aquela
coisa: vamos enterrar a CBF, nos despedir desse tipo de técnico, vamos
repensar que morreu um certo futebol que a gente tinha. E ninguém falou nisso,
porque não há espaço para luto, não há espaço para a derrota. A derrota é
antinarcísica: eu não consegui ser forte o suficiente. Um país que não sabe
lidar com perdas não consegue se reconstruir. Para nós, a tristeza virou
frustração, virou impotência. Se você está triste é porque você perdeu, no
sentido de que seu narcisismo foi abalado. Aqui tem essa confusão da tristeza
com a depressão. Se você não deu certo é porque não conseguiu fazer as escolhas
corretas do ponto de vista do show de seu eu.
ÉPOCA – É possível botar o brasileiro no divã?
Dunker – Aí tem uma coisa interessante, que é o fato de o Brasil já
estar no divã faz muito tempo, devido a um fato histórico que é pouco
pronunciado e estudado. A psicanálise entrou em nossa universidade e em nossa
psiquiatria nos anos 1920, 1930, que é quando o Brasil estava começando a se
pensar. As grandes narrativas do Brasil ainda são desse período. É Sérgio
Buarque de Hollanda,Gilberto Freyre, Caio Prado. Todos eles vieram depois do Freud.
O Brasil começou a se pensar com a psicanálise. Isso não aconteceu naArgentina, nos Estados
Unidos, na África do Sul ou na Austrália. E somos um país muito
peculiar do ponto de vista da psicanálise, que continua dando certo por aqui. A
psicanálise não é só a solução, é um sintoma do Brasil.
ÉPOCA – Como as redes sociais entram nessa história do narcisismo à
brasileira?
Dunker – Na rede social, o Google e o Facebook vão
lhe sugerindo amigos que são como você, vão instruindo pessoas que pensam como
você. Ao contrário do que se pensa, o mundo não vai se ampliando, ele vai
diminuindo de tamanho. Você vai compactando o narcisismo. E o que acontece
quando a pessoa acha que o mundo inteiro é feito de gente como ela? Fica
corajosa para caramba. Essa soberba e o desdém pelo outro são muito
potencializados quando se está no ambiente virtual. E o sofrimento decorrente
disso também é brutal. O cara vai vivendo numa bolha e, quando sai da internet,
tem uma descompressão narcísica que dá embolia. Se você saiu da internet e as
massas não se levantaram a seu favor, é porque você tem um problema. E no fundo
o neoliberalismo está inoculando a ideia de que você dá errado por
sua causa.
ÉPOCA – As pessoas estão virando microempresas?
Dunker – Exatamente. É isso que estamos estudando na USP agora.
O neoliberalismo cria um sofrimento e mostra como você deve administrá-lo para
gerar mais produtividade. E, quando não consegue, você cai em depressão, fica
excluído do sistema e vai para o depósito. Essa ideia está apoiada numa outra
de que todo mundo deve se pensar como empresa. A educação tem de se pensar como
empresa. E, se pensar educação como empresa, isso vai terminar mal.
ÉPOCA – Você citou uma expressão de Freud para determinar quem era a
autoridade da casa: “sua majestade, o bebê”. A gente pode parodiar que, hoje,
nas redes sociais vale o “sua majestade, o soberbo”?
Dunker – Exatamente. A rede social criou uma ilusão de que no fundo
você é a majestade. Você detona os inimigos, dá opiniões que vão se espalhar
pelo mundo. É uma ilusão.