No dia 15 de fevereiro de 2010 fiz uma excursão, conforme indicado em livros antigos, ao local onde funcionara a antiga Fábrica da Mantiqueira, fundada pelo Dr. Carlos Pereira de Sá Fortes, em 1887, o primeiro laticínio do Brasil e segundo alguns pesquisadores a primeira indústria laticinista da América Latina, um estabelecimento destinado à fabricação do queijo do reino.
Dr. Sá Fortes, foto publicada na Revista O Malho
(RJ) – Edição nº 096 Ano: 1904
O agradável passeio foi realizado em companhia de meu pai, numa segunda-feira de carnaval, em que propusemos deixar Barbacena pela rodovia MG-338 até o distrito de Sá Fortes, no município de Antônio Carlos, onde deixamos a estrada asfaltada para encararmos de automóvel o antigo trajeto da Estrada União Industria.¹ Serra abaixo, em alguns trechos, o capim que tomava a antiga rodovia chegava à altura da janela do carro, risco compensado pelo belíssimo horizonte que tínhamos pela frente, as vertentes das Minas Gerais.
A excursão nos proporcionou imaginar as dificuldades das viagens de nossos antepassados em carruagens que atendiam de 15 em 15 dias a Cidade de Barbacena pela União Indústria. Alcançamos, afinal, a BR-040 e às margens da rodovia Santos Dumont-Cabangu, à esquerda de quem vai para a fazenda natal do célebre aviador brasileiro, entramos numa estrada de terra à procura da antiga Fábrica da Mantiqueira.
Três quilômetros além, localizamos o antigo prédio do laticínio, totalmente alterado, transformado num sítio de lazer. Ali fomos muito bem recebidos pela proprietária e família, uma vez que não havíamos combinado visita. Conhecemos a parte da construção que ainda sobrevivia ao tempo. Totalmente alterado para fins residenciais, a edificação mantinha as paredes do antigo laticínio de pé, as escadarias e salas de congelamento. A adução da água da cachoeira para o prédio foi preservada, mantendo-se intacta a base de pedra onde girava a grande roda motora de ferro da fábrica.
Tudo muito espetacular para quem estudara em detalhes aquela construção.
A fábrica foi montada de acordo com plantas enviadas da Holanda e da Europa e foram também de lá importados os equipamentos e os acessórios para as instalações. O pessoal técnico da Fábrica da Mantiqueira era todo de nacionalidade holandesa e os primeiros experimentos não corresponderam às expectativas. Durante três anos não se obteve resultado satisfatório na fabricação de produtos lácteos. O clima do alto da Mantiqueira, cheio de irregularidades e o mal definido das estações, prejudicava a fabricação dos produtos, considerando os aspectos técnicos da época. Fizeram-se queijos tão bons, perfeitos e saborosos como os melhores da Holanda, mas, só obtidos no inverno.
Fábrica da Companhia Brazileira de Lacticínios no Rio de Janeiro (1907)
No início, milhares de queijos deteriorados foram desprezados e, senão a persistência de Sá Fortes, a fábrica estaria fadada à falência. O importante fazendeiro e médico mineiro continuou investindo em melhoramentos técnicos, alcançando um aperfeiçoado processo de resfriamento do leite, conseguindo assim, diminuir a perda dos produtos finais. A empresa de Dr. Sá Fortes foi a primeira a investir dinheiro no Brasil na compra e no aperfeiçoamento de vagões frigoríficos destinados ao transporte de produtos lácteos para o Rio de Janeiro.
A Fábrica da Mantiqueira foi montada à margem do Rio Pinho, no ponto em que as águas deste se lançam numa cachoeira de nove metros de altura, calculada para mais de 100 cavalos de força motora aproveitável do curso de água. A grande roda de ferro construída para o laticínio utilizava-se apenas de 20 cavalos de força para movimentar as máquinas do estabelecimento.
Na fábrica foram instaladas, à época, duas máquinas ecremeuses Laval, movidas a vapor, malaxeur e baratas holandesas, grandes bacias de recebimento e aquecimento para o leite, balanças para pesagem, aparelhos para lavagem a vapor do vasilhame destinado ao acondicionamento do leite e duas grandes caldeiras, uma do sistema Belleville e outras dos sistemas Bocke e Heldekoper.²
O prédio da fábrica, um vasto edifício de 50 metros de extensão por 17 metros de largura, todo de tijolos parede dupla, coberto por telhas francesas e com o pavimento térreo de asfalto e cimento, localizava-se a três quilômetros da Estação Ferroviária da Mantiqueira, a ela ligado por uma estrutura de linha férrea do sistema Decauville.³ Da fábrica, a linha seguia ainda mais três quilômetros e meio até uma grande construção de piso lajeado de pedras que tinha uma parte que servia de cocheira para os animais e outra parte em separado para a coleta do leite que vinha em latas de ferro recolhidas nas fazendas da região. Na beira da linha ainda existia o prédio que servia de alojamento e refeitório dos empregados.
O transporte do leite do primeiro prédio para a fábrica e, posteriormente, o transporte dos produtos beneficiados para a Estação da Mantiqueira eram feitos em vagões apropriados puxados por animais. A princípio, a tração foi realizada por locomotiva, mas a experiência dos primeiros anos provou ser mais vantajosa e econômica a tração animal. Parte do leite, recebido pela fábrica, era produzido nas fazendas da família Sá Fortes, numa média de 700 litros diários.
No prédio do laticínio, além do salão próprio para o beneficiamento de derivados do leite, funcionava a fábrica de gelo que resfriava 2.500 litros de leite por hora, à temperatura de um grau abaixo de zero. A câmara frigorífica para o congelamento do leite podia congelar mais de 3.000 litros por dia. Noutro salão do prédio funcionava uma bem montada oficina para a manutenção das máquinas, um torno mecânico, vários equipamentos para a fabricação de latas, fornos para fundição de metais e uma completa serra sem fim da marca Panhord & Levasseur.
Na visita que fizemos ao local, a proprietária nos mostrou uma ponta da linha férrea Decauville, no jardim da casa, uma peça que sobreviveu ao tempo. A estrada que segue mais três quilômetros e meio é o antigo leito da linha Decauville que nos levou até o Sítio do Galo – construído sobre o lajeado de pedras citado acima – sítio este que o Dr. Sá Fortes mandou construir para realizar o ajuntamento do leite de suas fazendas e demais propriedades da região – que, naquele local, era colocado em latões de ferro dispostos em vagonetas puxadas por muares que levavam o produto in natura até a fábrica.
O passeio pela região, em 2010, nos revelou mais detalhes do processo de transporte da antiga indústria: às margens do Rio Pinho ainda se podia verificar as bases da extinta linha Decauville que seguia até a Estação Ferroviária da Mantiqueira, àquela altura em ruínas e, à sua frente, um grande lajeado de pedra onde começava o ramal que servia a fábrica.
Em 1890, Dr. Sá Fortes transformou a Fábrica da Mantiqueira em uma sociedade anônima sob a denominação de Companhia de Lacticínios, embora de origem puramente mineira, por conveniência comercial, teve sua sede na então capital federal, o Rio de Janeiro. Ali possuía, junto à Estação do Rocha, em importante propriedade, uma fábrica de gelo, com vastas salas frigoríficas destinadas à fabricação de queijos frescos.
Em 1913, poucos meses antes de seu falecimento, Dr. Sá Fortes procurou dar maior expansão à Companhia de Lacticínios da Mantiqueira, tornando-a subsidiária da Companhia Brasileira de Lacticínios que tinha como sócios os poderosos empresários Horácio de Oliveira Castro, Arrojado Lisboa, Hermann Soltz & Cia, Teixeira Borges, Castro Brown, Júlio Meireles, Raul Leite e L. Dupont, este, filho do grande industrial francês fabricante da famosa Manteiga Demagny.
A numerosa família Sá Fortes, após a morte de seu patriarca, subdividiu seu patrimônio, principalmente focado nas fazendas de criação e nas terras que possuíam. A Fábrica da Mantiqueira continuou em operação até os anos 1930, quando foi definitivamente vendida aos holandeses da família Kingman.
O Legado de Sá Fortes ainda se traduz pelos inúmeros estabelecimentos da indústria láctea concentrados nos municípios de Antônio Carlos, Barbacena e Santos Dumont. A bacia leiteira de Minas Gerais nasceu nas encostas da Serra da Mantiqueira e aqui se faz perene as lides laticinistas, empresas fabricantes de queijo, leite pasteurizado, iogurte e requeijão, corajosos empreendedores que continuam se espelhando na saga iniciada pelo Dr. Carlos Pereira de Sá Fortes.
Informe sobre a Companhia de Lactícinios da Mantiqueira,
Leitura para Todos (RJ) 1905.
Leitura para Todos (RJ) 1905.
NOTA DA REDAÇÃO: Silvério Ribeiro é Pesquisador e Escritor
Notas:
1 – A Estrada de Rodagem União Indústria, ligando a cidade de Petrópolis a Juiz de Fora, foi a primeira rodovia macadamizada da América Latina, inaugurada em 23 de julho de 1861. A estrada estendeu-se depois atingindo também o Alto da Mantiqueira, portanto, o município de Barbacena.
2 – A ecremeuses Laval era uma desnatadeira cujo processo se constituía em realizar a retirada do creme do leite para a fabricação da manteiga. Esta separação da gordura do leite se fazia por um processo centrífugo; o malaxeur era uma batedeira utilizada para fabricar a manteiga obtida a partir do creme apurado na ecremeuses. As caldeiras se destinavam a fabricação do vapor utilizado como força motriz. A caldeira do sistema Belleville era uma caldeira aquatubular também denominada caldeira de paredes de água ou tubos de água. Neste sistema a água é aquecida nos tubos que passam pelo interior da caldeira. A caldeira Belleville utilizada era uma caldeira vertical de alta pressão. Na falta de maiores detalhes sobre o sistema Bocke e Heldekoper acreditamos tratar-se de caldeiras de baixa pressão utilizadas para aquecimento da água destinada à lavagem do vasilhame da fábrica.
3 – O Decauville é um sistema de caminho-de-ferro de via ultra-estreita (bitola de 40 a 60 centímetros de largura) que ficou conhecido pelo nome de seu inventor Paul Decauville. A via é formada apenas por elementos metálicos pré-fabricados, que podem ser facilmente desmontados, transportados e reutilizados. A preparação da plataforma e a colocação da via requer pouco trabalho. As vagonetas eram inicialmente empurradas manualmente ou puxadas por cavalos. A aparição de pequenas locomotivas Decauville e de material rodante diverso, tornou o sistema um verdadeiro caminho-de-ferro, que encontrou aplicações em numerosos domínios: na mineração, industrial, agrícola, pecuário, militar e turístico. O sistema Decauville se tornou excelente “carregador” dentro de propriedades, podia transportar volumes de carga que antes seriam deslocados a muares ou mesmo por serviço manual, assalariado ou escravo. As suas linhas geralmente não passavam dos 15 quilômetros de extensão, mais que suficiente para atender a maioria dos usos à época.
Fontes:
Revistas:
Leitura para Todos – Rio de Janeiro – Ano 1905
O Malho – Rio de Janeiro – Edição 096 – Ano de 1904