por Breno
Altman
A decisão do
presidente norte-americano, Barack Obama, de reatar relações diplomáticas com o
Estado cubano e amenizar sanções econômicas, somente tem paralelo histórico com
a Guerra do Vietnã.
Os Estados Unidos acreditaram, entre 1960 e 1975, que seu poderio militar e
financeiro seria suficiente para subjugar os soldados de Ho Chi Minh e Giap.
Mas as derrotas no campo de batalha, a mobilização pela paz dentro de suas
próprias fronteiras e o desgaste internacional levaram o governo Nixon à
capitulação.
A mesma soberba imperialista determinou o comportamento da Casa Branca frente à
revolução cubana. Sucessivos presidentes, desde o triunfo liderado por Fidel
Castro, acreditaram que seria possível estrangular o novo regime através da
sabotagem, da intervenção armada e do bloqueio.
Há décadas era visível que esta estratégia, mais uma vez, estava fadada à
derrota. Mas o peso da comunidade cubano-americana, associado às heranças
ideológicas da Guerra Fria e à cultura hegemonista do capitalismo
norte-americano, impedia o reconhecimento do fracasso.
Obama entrará para a história, com ajuda do papa Francisco, por ter tido a
coragem de assinar rendição inevitável. Uma frase sua serve de síntese ao
episódio: “estes cinquenta anos mostraram que o isolamento não funcionou, é
tempo de outra atitude.”
Giro de Obama
Praticamente na metade de seu segundo mandato, sem preocupações eleitorais, o
primeiro negro a ocupar o Salão Oval parece estar empenhado em reconstruir sua
imagem junto aos setores progressistas que o apoiaram e se sentiam traídos por
uma administração capturada pelo establishment.
O decreto que legaliza cinco milhões de imigrantes ilegais foi o primeiro passo
relevante desta jornada de resgate biográfico. A declaração de reatamento das
relações diplomáticas com Cuba, o segundo.
Lembremos que o bloqueio não está anulado, pois depende da decisão de um
Congresso controlado pelos republicanos. Ser á batalha complicada e
provavelmente prolongada. Obama optou, de toda forma, por ir ao limite de sua
jurisdição política, como no caso dos imigrantes, peitando correlação
desfavorável de forças no Parlamento.
Mesmo que o embargo ainda seja situação pendente, continuando a sufocar o
funcionamento da economia cubana, é fato que o presidente norte-americano deu
passo fundamental para enterrar a velha política de seu país acerca da ilha
caribenha.
Os paradigmas imperialistas, registre-se, não foram alterados.
Basta ver a pressão que os Estados Unidos continuam a exercer, através do
surrado cardápio de punições e sabotagens, contra governos que colidem com seus
interesses, a exemplo da Venezuela.
No caso de Cuba, porém, a realidade se impôs.
Análises equivocadas
Não falta, é claro, quem prenuncie o colapso da revolução e seu sistema
político-econômico em função do cenário de distensão: o socialismo cubano
sucumbiria ao contato com recursos financeiros, valores e oportunidades
oferecidos, a partir de agora, pelos Estados Unidos.
Repetem aposta feita no passado.
Diziam que Cuba não resistiria ao bloqueio e seus cidadãos, depois de alguns
meses sob penúria e escassez, derrubariam Fidel Castro.
Quando o cavalo do embargo despontava como páreo perdido, veio o colapso da
União Soviética. O regime liderado pelo Partido Comunista seria varrido logo
mais, como ocorrera em outros países socialistas.
Outro erro dos clarividentes opositores, que deveriam ter aprendido a ser mais
modestos em suas eloquentes previsões.
A revolução cubana, ainda que em meio a gigantescas dificuldades e graves
erros, logrou sobreviver, construir alternativas e desenvolver notável
capacidade de auto-reforma.
Aos poucos, com a vitória de partidos progressistas em diversas nações
latino-americanas, o isolamento continental se reverteu e Cuba retornou a seu
espaço natural, oxigenando a economia e a sociedade.
Os investimentos brasileiros e venezuelanos, entre recursos de diversas
origens, são reveladores da capacidade cubana de erguer pontes e sair do casulo
pós-soviético.
Talvez o porto de Mariel, financiado pelo BNDES, seja o empreendimento mais
representativo e promissor desta etapa de reinserção. Poderá se constituir, com
certa rapidez, na conexão do país e seus parceiros com o mercado mundial, além
de pólo para a reindustrialização local e a consolidação de coalizão com a Am
érica do Sul.
A despeito das sanções e arreganhos norte-americanos, a lenta recuperação
cubana vem se afirmando através da integração regional, de forma autônoma e
consistente.
Quem passou a ser assolado pela praga da solidão, a bem da verdade, foi o velho
inimigo.
Os Estados Unidos, que no passado haviam colocado o subcontinente contra Fidel,
passaram a conhecer forte tensão ao sul, abalando sua influência e alianças.
Uma das razões era exatamente a orientação discriminatória contra Cuba.
A gota d’água para a falência da geopolítica isolacionista materializou-se no
impasse durante a preparação da Cúpula das Américas, prevista para julho de
2015, à qual os cubanos estavam convidados pelos Estados meridionais ao Rio
Grande e vetados apenas pela Casa Branca.
Futuro
Os obstáculos no novo ciclo, é certo, serão imensos.
A ampliação dos fluxos comerciais e financeiros, além da disputa política e
cultural, poderá afetar a estrutura do país mais igualitário da região, fundada
sobre a universalização de direitos sociais.
Tradicionais adversários da revolução não pouparão esforços para minar a
credibilidade e o funcionamento do sistema cubano, tentando impor mudanças que
alterem profundamente a organização política e econômica.
Também buscarão se aproveitar da troca geracional, com o grupo dirigente de
Sierra Maestra escrevendo o epílogo de sua jornada.
A direção castrista, vencido o bloqueio, paulatinamente terá que substituir o
anti-imperialismo, como narrativa dominante, pelo convencimento prático e
cultural, principalmente junto às gerações mais jovens, acerca da superioridade
de seu sistema em comparação ao capitalismo.
A tarefa será complexa: não se trata apenas de provar que o socialismo à cubana
tem maior capacidade de preservar inegáveis conquistas sociais, mas também sua
permeabilidade a ajustes que permitam impulsionar um longo ciclo de
desenvolvimento econômico e o aprofundamento da participação popular na política.
Apesar destes fantásticos desafios, os últimos acontecimentos, com Golias se
curvando à resistência de Davi, deveriam servir de alerta para os oráculos do
apocalipse cubano.
Há povos e dirigentes, em determinadas etapas da história, que não se curvam nem
sequer diante dos mais duros sacrifícios para defender sonhos e projetos.
Mesclam, ademais, vocação de resistir com inventividade para encontrar soluções
adequadas.
A chegada dos últimos cubanos que estavam presos nos Estados Unidos desde 1998,
julgados por espionagem, é recado humano e simbólico desta vontade nacional que
a revolução, goste-se ou não de seus resultados, foi capaz de construir.
Não havia festa e alegria nas ruas pelos 53 prisioneiros que Raul Castro
ordenara libertar, fruto da negociação com Obama, considerados de “interesse
dos Estados Unidos”.
O júbilo era pelos compatriotas cujo retorno representa célebre vitória sobre o
gigante que, há mais de cinquenta anos, ameaça a autodeterminação de Cuba.
Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi.