Fui poupada. Atravessei a noite de 2018 para 2019 a salvo da angústia das retrospectivas do ano e das profecias para a era que se inicia.
Sem internet ou televisão, na sede de uma ex-fazenda de café no Vale do Paraíba, na divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, me afastei da pressão das festas, perdida no que resta do Brasil colonial.
Impressiona que a pouco mais de duas horas de carro de grandes centros urbanos ainda exista um fundão intocado, que conserva o isolamento vivido por aqueles que se aventuraram a cruzar o Atlântico para "civilizar" esse enorme naco de terra apartado do mundo.
Passada a meia-noite, alguém botou um funk para tocar e as meninas de 13 anos se empoderaram em torno da fogueira, rebolando as carnes com a convicção do "meu corpo, minhas regras".
Entre os presentes, uma artista plástica carioca, dona de uma tatuagem MADE IN BANGU estampada no extraordinário derrière, foi a única dos de maior capaz de acompanhar as adolescentes no bate-coxa. Os adultos não possuíam nem molejo nem joelho para encarnar a
Anitta. É assim que se envelhece.
O cenário arcaico, a noite escura iluminada pelas labaredas e o embalo do batidão reproduziam cenas de
"Casa-Grande & Senzala". O genocídio e a escravidão, a violência e a resistência cultural que formaram o Brasil estarão sempre presentes, mesmo num Réveillon doce, como esse que experimentei.
Depois de três dias
longe do noticiário, conectei o celular. No Congresso, o presidente e o vice
cantavam o hino de peito inflado e em posição de sentido, com uma convicção
patriótica poucas vezes vista.
FHC era sociólogo,
poliglota e cidadão do mundo. Ele entoava os versos com a superioridade cívica
de um intelectual da Sorbonne. Lula, retirante, operário e líder sindical,
cantou tomado por uma emoção macunaímica de quem, contra todas as expectativas,
chegara ao poder como representante legítimo do povo.
Messias, não.
Messias é um capitão que aprendeu na caserna o sentido guerreiro de se jurar a
bandeira.
Pode-se dizer tudo
do escolhido, menos que ele não tenha apoio popular. Os peregrinos que foram
até Brasília assistir à cerimônia são prova disso.
E ainda teve o
carisma insuspeito de Michelle para redobrar a euforia da massa. Com um decote
ousado, porte de valquíria e discursando em Libras, ela desponta como a mais
nova candidata a Evita do continente Sul.
A ordem e o
progresso que Bolsonaro promete reestabelecer no país têm raízes tão profundas
na nossa formação quanto as da velha fazenda que me acolheu.
O primeiro decreto
do presidente transfere para o Ministério da Agricultura a regularização
fundiária das terras indígenas e quilombolas. Messias identifica nesses dois
grupos uma ameaça à produtividade da nação e à soberania nacional.
O patriarca eleito,
séculos depois da colonização, ainda luta pelas mesmas bandeiras dos senhores
de terra do Vale do Paraíba.
Tanto o patriotismo
militar (...)
Fernanda Torres
Atriz e roteirista,
autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.