Uma pedra no meio do caminho
Por
Michel Blanco .
Defender
a legalização das drogas em meio ao alastramento do crack
no país
é fazer um pacto com o capeta, certo? Afinal, o pesadelo de pais que se
prezem é o filho passar de um pega num baseado para a carreira de cocaína e
dali para baforadas finais em um cachimbo da pedra. O temor se fundamenta no
pressuposto de que mais pessoas serão tentadas a consumir drogas se
legalizadas.
Essa
ideia, no entanto, pode ser um equívoco. Leis antidrogas rígidas não garantem
boas noites de sono para pais aflitos. Não há correlação entre proibição e
redução de consumo. Al Capone que o diga: cidadãos de países onde a legislação
é extremamente dura, como os Estados Unidos, se drogam mais em relação a
outros. O grande feito do endurecimento legal antidrogas nos EUA é o inchaço da
população carcerária – além de bilhões de dólares gastos na repressão, que
ajudam a movimentar a cadeia de produção da indústria bélica.
Em
contrapartida, a legalização pode reduzir tanto a oferta quanto o consumo.
Heresia? Não, legalização não quer dizer oba-oba, mas o contrário. O traficante
atua como empresário de um setor ilegal da economia, e como tal busca acumular
capital, conquistar mercados, diversificar investimentos e reinvestir em seu
ramo principal. O mercado de drogas ilícitas não é oposto à racionalidade
capitalista, mas é a versão mais radical de seus valores, que não tolera
impedimentos para sua expansão. Vive em autorregulação plena, como desejam
alguns setores mais dinâmicos e criativos da economia brasileira. Justamente
por ser ilícito, o tráfico de drogas foge de qualquer regulação: não há
distinção entre oferta para adultos e crianças, garantia de padrões de
qualidade (afinal, cocaína ‘batizada’ com pó de mármore ou algo do tipo causa
um estrago a mais) ou advertência sobre os riscos do consumo.
Legalizar
pressupõe, obviamente, a ação eficiente do Estado, e sob outra perspectiva,
deslocando o problema da esfera policial para a saúde pública. As drogas seriam
tributadas e sua produção, regulada; a receita proveniente da atividade
(juntamente com a grana economizada com a repressão policial) bancaria
campanhas de esclarecimento e tratamento a dependentes. Fornecedores como
Fernandinho Beira-Mar ou Elias Maluco seriam substituídos por gente com alguma
responsabilidade pública. Muito idealista? Para quem curte pipoco e cassetete,
talvez.
Longe
da perfeição, tal sistema exigiria fiscalização constante. Mas a política de
redução de danos é a solução menos ruim para o problema, ante a constatação do
fracasso da simples repressão policial e da falta de evidência de que
chegaremos algum dia a um mundo livre de drogas. A defesa dessa mudança de foco
ganha adesão em correntes ideológicas diversas. Da esquerda libertária ao
liberalismo clássico – há 20 anos está na pauta da revista
The Economist,
ícone do liberalismo britânico. No Brasil, também começa a crescer o apoio
político. O ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso
está nessa há um tempo. Agora é o governador do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral, quem se diz a favor de debater a legalização de drogas
leves, convencido de que “a proibição simples tem gerado muito mais prejuízo do
que uma ação inteligente do poder público”.
Para
ser eficaz, a ação do poder público deve mudar a forma de encarar o
narcotráfico. A força do narcotráfico não se desenvolve apenas na violência
desenfreada. Sua capacidade de fragmentar comunidades também é resultado das
formações e vínculos sociais e culturais que promove em áreas onde predominam a
pobreza e o descaso, em meio à incapacidade do Estado de ser agente do
bem-estar. O narcotráfico não se
trata de um meio de mobilização de poder que percorre unicamente submundos. O enorme potencial
de corrupção dos bilhões de dólares que gera permite que percorra salões de
governo e transações eletrônicas que saltam em contas bancárias robustas, em
mercados de ativos e outras aplicações. Se o narcotráfico corre tão solto como
se vê, é porque talvez não esteja confrontando-se com as estruturas de poder
vigentes, mas fortalecendo-as. Está aí o elo a ser quebrado.
A
legalização, em suma, implica a consolidação de uma política de saúde pública
coerente no enfrentamento do uso abusivo de drogas, livre de preconceitos que
distinguem substâncias lícitas de ilícitas. Rever o papel regulador do Estado
sobre substâncias entorpecentes e enfrentar as drogas como um problema
prioritariamente de saúde pública dá a chance de lidar com a dependência
química de drogas pesadas como o crack, hoje um problema nacional, de maneira
mais adequada.
O mundo fantasioso
dos comerciais de cerveja e a prescrição desenfreada de barbitúricos também
precisam de um olhar mais atento do poder público. Mas a regulação dos
cigarros, embora ainda deficiente ante a criatividade do marketing tabagista,
dá alguma esperança: o número de fumantes no Brasil cai a cada ano. E não é
demais lembrar que, apesar de muitas drogas ilícitas serem extremamente
prejudiciais à saúde, nenhuma rivaliza com a nicotina em
potencial de dependência química. Vicia mais do que álcool, cocaína, morfina e…
crack.