A recente triplicação do valor do Fundo
Partidário, que passou de R$ 294 milhões para R$ 867 milhões, representa um
passo a mais na estatização e na autarquização dos partidos políticos
brasileiros. A dependência estatal dos partidos está relacionada a uma série de
outros itens: programas gratuitos de rádio e TV nas campanhas eleitoras (pago
com recursos públicos); verbas para os gabinetes parlamentares; cargos de livre
provimento em organismos da União, Estados e municípios; recursos para
institutos e “ONGs” partidárias; contratação de empresas e consultorias ligadas
a partidos políticos etc.
A estatização dos partidos os leva à
sua autarquização em relação à sociedade e ao eleitorado. Este conceito exprime
a ideia de que os partidos dependem cada vez menos dos eleitores e de vínculos
com grupos e movimentos sociais. Tornam-se cada vez mais autônomos. Isto, em
parte, explica a crise de representação política.
Muito se tem discutido sobre a crise
dos partidos e da representação. Um dos supostos básicos é o de que a crise dos
partidos provoca a crise de representação. A tese é apenas parcialmente
verdadeira, pois é preciso dimensionar melhor o que se entende por “crise dos
partidos” e se ela é real ou suposta. Bernard Manin, por exemplo, declarou que
estamos vivendo os estertores da democracia partidária. Mas, por onde quer que
se olhe, os partidos continuam no comando apesar das crises econômicas e
sociais, das guerras, do crescimento das desigualdades, do fracasso das
políticas públicas e da incapacidade dos governos apresentarem soluções
minimamente razoáveis para os problemas existentes. Em contrapartida,
verificou-se, nos últimos tempos, o fracasso dos movimentos autonomistas, das
organizações em rede e similares.
O mais provável, então, é que esteja
ocorrendo uma metamorfose das organizações partidárias e sua adaptação às novas
condições econômicas, sociais, culturais e tecnológicas do nosso tempo. Essa
metamorfose traz como consequência uma dependência crescente dos partidos ao
Estado e aos grupos econômicos e uma dependência decrescente em relação à
sociedade e aos eleitores. É o Estado e são os grupos econômicos quem financiam
os partidos e as campanhas eleitorais. As campanhas eleitorais executadas pelos
meios de comunicação de massa (rádio e TV), a internet e as redes sociais colocaram
nas mãos dos partidos meios de propaganda que dependem cada vez menos da
mobilização de militantes e de grupos sociais.
A crise de representação, por seu
turno, é real. As pessoas se sentem pouco representadas pelos partidos, pelos
políticos e pelas instituições do Estado. Se a estatização provoca o fenômeno
da autarquia dos partidos, então ela é um elemento da crise de representação,
mas não explica a totalidade dessa crise. O surgimento da democracia monitória
(instituições e organizações que criticam e fiscalizam os partidos e os
políticos) também gera a perda de confiança e de capacidade representativa dos
partidos.
Por outro lado, é preciso levar em
conta que a própria sociedade civil está se tornando cada vez mais complexa. As
pessoas se agregam em inúmeros movimentos, organizações, grupos e entidades que
também passaram a exercer papéis de representação e de reivindicações que
extrapolam apenas os interesses salariais. Esses entes se mostram mais
flexíveis e permeáveis e menos burocráticos do que os partidos e,
consequentemente, exercem mais atratividade sobre os jovens e outras pessoas
que buscam algum tipo de participação. O acesso que eles têm a autoridades
políticas e às casas legislativas tornam os partidos prescindíveis como
elementos de mediação e ligação, e transformam a democracia numa espécie de
democracia de audiências. Assim, a autarquização dos partidos requer apenas
identidades fracas entre o partido e os militantes e o partido e seus
eleitores. Para os partidos mais fortes, o que importa é vencer eleições e para
os mais fracos, se associar aos partidos vencedores. As eleições se tornaram o
principal meio de acesso a recursos estatais, cargos e recursos de campanha.
Liderança fraca e partido-agência – A
dissolução das ideologias, a indiferenciação entre os partidos, a sua
burocratização e autarquização, o seu baixo nível de dependência da militância
e dos grupos sociais, a pasteurização das campanhas pelo marketing o
enfraquecimento da necessidade de mobilização da sociedade e da militância para
vencer eleições, constituem um conjunto de elementos que enfraquecem também a
necessidade de líderes políticos fortes. Líderes políticos fortes, carismáticos
e autênticos só surgem em contextos sociais de mobilização e de luta. Cada vez
mais, aqueles líderes cedem lugar a políticos de baixo perfil de liderança, a
políticos que mascaram suas identidades com a fisionomia de gestores, mas que,
quase sempre, são carreiristas, oportunistas e corruptos.
O que existe hoje, portanto, é uma
democracia de paradoxos: os partidos representam cada vez menos, são cada vez
mais fracos junto à sociedade, mas, ao mesmo tempo, mais fortes no poder. A
crise de representação dos partidos não abala seu poder. Pelo contrário, o
fortalece por estarem os partidos cada vez menos sujeitos à pressão da
sociedade.
No início do século XX, Max Weber e
Robert Michels já consideravam que a crescente burocratização, racionalização,
hierarquização e oligarquização dos partidos políticos os tornariam cada vez
menos dependentes da militância e das massas. Weber via os partidos se
transformando em “maquinas de poder”, funcionando mais como empresas
agregadoras de interesses econômicos. Na medida em que os partidos são cada vez
mais estatais eles se assemelham com agências que fazem a mediação dos
interesses dos grupos econômicos com o Estado. O próprio discurso dos
interesses gerais da sociedade perde relevância na retórica dos partidos,
cedendo espaço para o discurso dos interesses grupais e particulares.
Se nesta democracia de paradoxos a
crise parece ser menos dos partidos e mais de representação, a atenção deve ser
deslocada da preocupação com a salvação dos partidos para a preocupação com a
geração de novas formas de representação e de participação política da
sociedade. A lacuna existente entre os representantes e os representados não só
vem aumentando, mas se torna cada vez mais insanável à medida que os partidos
se interessam cada vez menos pela militância e pelos seus vínculos sociais e à
medida que a sociedade se interessa cada vez menos pelos partidos. Mas a
sociedade não deixa de manifestar seu desconforto e descontentamento para com a
representação. Será a sociedade civil, cada vez mais complexa e plural, que
poderá fazer surgir novas estruturas de representação. Só faz sentido apostar
na criação dessas estruturas se elas significarem desconcentração de poder e
ganhos em termos de participação e decisão democráticas.
Artigo de Aldo Fornazieri, professor da Faculdade de
Sociologia e Política de São Paulo, publicado em 11/05/2015