
Uma leva de
pensamentos sobre como seria o mundo sem o trabalho transcorre “o telencéfalo
altamente desenvolvido” de um animal possuidor do “polegar opositor” (ILHA DAS
FLORES, 1989), o então ser humano, que está a contemplar o mar em um fim de
tarde. Mas, no mesmo instante, no mais íntimo momento de solidão em uma estação
de metrô depois de dez horas de labuta em uma fábrica, o pai de família se
orgulha de ter vendido seu corpo, pois bem sabe que “o trabalho dignifica o
homem”. Ambos cristãos-ocidentais são donos de uma vida economicamente
distinta, de diferentes graus de escolarização, no entanto, ambos e suas
famílias abominam a preguiça: “O laço que ata preguiça e pecado é um nó
invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo” (CHAUI,
1991, p 10). Com o desenrolar das décadas, a façanha das máquinas, a produção
do sentido da vida – “mediocridade feliz” -, o pecado se faz imoral à sociedade
numa confusão com a própria ética. E assim, os ambos se multiplicam em
múltiplos e diversos outros homens e mulheres que fazem da preguiça a fraqueza,
o vício, a causa das criminalidades, a extrapolação dos prazeres, a destruição
da família, a propensão da vida com menos racionalização de promessas futuras,
a possibilidade da vida no espírito trágico.
A preguiça de um
deve ser maquiada de outrem, assim, o medo do inferno em troca do medo dos
olhos e bocas alheios. O céu adquirido com o emprego dos sonhos nos formatos
mais diferenciados que a contemporaneidade tem produzido: operário, estagiário,
profissional autônomo, liberal, funcionário-público, no modelo de trabalho
tradicional ou com a gestão colaborativa. Mais os anos passam, mais “o trabalho
como um freio para as nobres paixões do homem” (LAFARGUE, 1991, p 70), um dogma
edificante da modernidade, da sociedade industrial, esta que em “sua
instauração supõe não só transformações econômicas e tecnológicas, mas também a
criação de novas regras do jogo, novas disciplinas” ( PERROT, 1988, p 53). Se
na França do século XIX os operários eram os excluídos da história, que dizer
dos preguiçosos convictos?
Lafargue ao escrever
sobre a preguiça em 1880 pressupôs a falência do ócio justamente em uma época
em que “burguês”, “proletariado”, “capital” e “trabalho” eram um dos termos
efervescentes dos textos e discussões do cerco intelectual. No mesmo período em
que se desenvolviam novas tecnologias, a ascensão da máquina, a criação de
indústrias, aprimoramento da produção, teve início a percepção das estratégias
de controle do operariado, a construção dos conceitos de “exploração da força
de trabalho”, a “mais-valia”, a “luta de classes”, apontados por Marx, a
“propriedade” criticada por Proudhon, entre tantos outros como Bakunin, Engels
e Weber que conectados em suas trupes -anarquismo, comunismo ou socialismo e seus
derivados - rompiam com a aceitação do modo de produção do momento. Segundo
Chaui, os escritos de Lafargue que compilam o livro O Direito à Preguiça, vão
de encontro com o “trabalho alienado”, conceito também explanado por seu sogro,
Marx. Uma escrita ácida e sarcástica, de uma fala direta com os personagens do
texto, burgueses e proletariados:
Trabalhem,
trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza
social e suas misérias
individuais, trabalhem, trabalhem para
que, ficando mais pobres, tenham mais razões
para trabalhar
e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da
produção
capitalista.(LAFARGUE, 1991, p 79)
As palavras de
Lafargue são ousadas, expõem a sujeição do proletariado do século XIX à uma
força que nos tempos gregos, por exemplo, era reservado aos escravos; utiliza
de termos religiosos que escamoteiam a sua ira numa ironia que desvela o
espírito do capitalismo de Weber quando redige sobre a ética protestante.
Destarte, o “Progresso” como o novo Deus para as quais as louvações da classe
trabalhadora está direcionando a fé. E ainda a tradição familiar contestada no
seio da disciplina fabril instalada.
Embora, alguns dos
conceitos disseminados nesse período do escrito de Lafargue estejam hoje
enfraquecidos devido à industrialização ter tomado outros rumos, o quarto
pecado capital soprado por entre as frestas da igreja e do estado, é presente
nos cálices e nos devaneios da atualidade. Muito timidamente, a preguiça agenda
hora para se manifestar nesses corpos: As férias, os finais de semana e os
feriados, tão ocupados pelos novos trabalhadores quanto os semáforos das
metrópoles ocupados com seus e “vadios” e “vagabundos”.
Sobretudo, na
maquinaria que perdura, a dignidade ainda perpassa pelo ato de trabalhar e a
preguiça ainda é a destruidora dos lares e a geradora de culpa. Nenhum triunfo
de “progresso” almejado no século XIX, apenas a transformação do trabalho.
Fabiele
Lessa - Acadêmica do 5º semestre de História FURB.
Referências
LAFARGUE, Paul. O direito a preguiça. 3. ed. Lisboa: Teorema, 1991?
ILHA das Flores. Direção: Jorge Furtado, 1989.
PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e
prisioneiros. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 53- 125.